​EM DEFESA DAS FLORES – Rubem Alves

“[…] “Tenho dó das flores nas coroas funerárias. Eu queria que algo fosse feito para protege-las, para impedir que aquele horror se fizesse a elas”. Minha imaginação passou das flores livres dos campos para as flores torturadas dos velórios.Concordei com a Carolina (esse era o nome da mulher-jovem de oitenta anos). Não conheço nada de maior mau gosto que os velórios. Ali tudo é feio. Tudo é grosseiro. As urnas funerárias – falta a elas a simplicidade de linhas. Parecem-se com essas mulheres que se cobrem de bijuterias – pensando que assim ficam bonitas. Os suportes metálicos, então, são horrendos. O saguão do velório do Cemitério da Saudade, até a Última vez que fui lá, estava cheio de frases graves e amedrontadoras do tipo: “Eterno e silencioso é o descanso dos mortos.” Que coisa horrível! Pior que as piores visões do inferno! No inferno pelo menos há movimento. Mas no tal descanso eterno tudo é silencioso. A música e os risos estão proibidos. Eu ficaria louco na hora, teria impulsos suicidas. Mas a desgraça é que, estando eu já morto, me seria impossível dar cabo de minha vida. Aos múltiplos horrores estéticos junta-se o horror das coroas de flores. Comparem a beleza de uma flor, uma única flor, um trevo azul de simetria pentagonal, com o horror de uma coroa. Olhando para a florinha do trevo meus pensamentos ficam leves, flutuam. Olhando para uma coroa meus pensamentos ficam pesados e feios. Numa coroa todas as flores deixam de ser flores. Elas não mais dizem o que diziam. Não mais são o que eram. Amarradas, contra a vontade, num anel artificial, do qual pendem fitas roxas com palavras douradas. São, as coroas, de uma vulgaridade espantosa. Ali as não-flores só servem de enchimento para os nomes. Eu tenho uma teoria para explicar o horror estético dos velórios. Quem me instruiu foi a Adélia Prado. Diz ela: No cemitério é bom de passear. A vida perde a estridência, o mau gosto ampara-nos das dilacerações. E eu que nunca havia pensado nisso, na função terapêutica do mau gosto! Nem Freud pensou. A gente vai lá, com a alma doída, coração dilacerado de saudade, e o mau gosto nos dá um soco. A saudade foge, horrorizada, por precisar da beleza para existir – e o que fica no seu lugar é o espanto. Pronto! Estamos curados! O mau gosto exorcizou a dilaceração. […]”

Desejo

Que no fim eu não carregue
Em meus lábios um
“Deveria ter amado mais”.

Que a cada instante eu me entregue
de corpo e alma, que não ceda ao comum
À leviandade amarga de uma existência fugaz.

Que minha face, marcada pelo tempo
Seja pintura divina
das histórias que estive a caminhar.

Que me julguem, palavras ao vento…
e minha loucura possa iluminar
através da poesia, a alma dos que se rendem
à incrível arte de amar…

 

Noites Nebulosas

Noites Nebulosas

A luminescência celestial que enriquece a imensidão noturna se recolheu e apequenou frente à nebulosa presença da dor, da frieza.

Tem noites que são tomadas pela escuridão, entorpecendo Minh‘ alma.

Tem noites que me saqueiam a arte de contemplar a magnificência da existência.

Tem noites que não há, sequer, um lampejo de esperança.

A.B.S.

A crise do homem no conhecimento de si mesmo

Cassirer, em seu texto “a crise do homem no conhecimento de si mesmo” procura abordar os diversos aspectos compreendidos na dramática e apaixonada temática do autoconhecimento. Ao debruçarmos sobre os diferentes pensadores que atreveram-se discutir quem é o homem, podemos observar uma inquietante constante – à luz de Sören Aabye Kierkegaard – denominada Angústia.

Em seu livro “A insustentável leveza do ser”, Kundera (1988) fala do peso de uma dor que -sentida por outros também – pluraliza-se na fantasia dos que compartilham do mesmo sentimento, transcendendo a materialidade e temporalidade. A angústia apresenta-se como uma dor em potência, condição inalienável ao ser humano, que em algum momento faz a passagem da potência ao ato.

Um filósofo singular e apaixonante por sua complexidade, Kierkegaard, despertou na filosofia uma nova visão ao ultrapassar as barreiras da metodologia racionalista e transpor a cisão entre o pensar, a experiência e o sentimento. Trouxe à tona – para além da essência das coisas e da natureza ou do próprio homem – a existência.

Nascido em lar religioso e criado por um pai extremamente rígido, Kierkegaard mostra uma filosofia carregada de paradoxos, espelho da vida dialética que levou. Ele deu um salto
quântico ao refletir acerca do homem em sua integralidade. Deduz-se, a luz de suas reflexões, que a existência se diferencia da essência na medida que ultrapassa o determinismo do que “o que faz com que um ser seja realmente o que é” para o estado de ser, de existir, interpretando o homem em termos de liberdade e possibilidade.

A existência é, portanto, de acordo com Kierkegaard, um eterno ser e vir a ser pois baseia-se não no tempo, mas sim no momento. Fundamentando-se na singularidade, na
construção da subjetividade do homem, a existência não se “encaixa” em nenhuma fórmula ou teoria a priori. Compreende-se então que o conhecimento do homem se respalda na sua subjetividade.

Certas vivências são consideradas por ele eventos-chave que, inevitavelmente, põe à face do homem sua angústia – sentida até que ele se liberte enquanto indivíduo, de forma integrar-se com suas emoções, experiências e pensamentos. A angústia surge, portanto, como um fator motivacional, uma força propulsora de mudança, na medida que proporciona ao sujeito a possibilidade de escolher, sendo assim, possibilidade de liberdade.

A subjetividade se relaciona com a angústia pois representa o desespero de ser “você mesmo”. O interessante é que, ao levantar a bandeira da individualidade, Kierkegaard não defende junto o individualismo, uma vez que reconhece a autorresponsabilidade nesse movimento e, como consequência, maior consciência da sua ação no mundo. Ele trás como único meio de transformação nesse processo a verdade, sendo imprescindível um encontro sincero com ela.

Existem verdades nas quais temos de comprometer a nós mesmos, tão essenciais que a existência é incompreensível sem elas, e sem as quais a vida não tem sentido.
Essas verdades não fornecem em si o sentido da vida, objetivo e intemporal, mas um sentido para si, para a subjetividade, para aquele indivíduo concreto que vive aqui e agora, cuja alma é incessantemente agitada pelas incertezas da existência e pelas escolhas diante das quais ela o coloca (Le Blanc, 2003, p.13).

Para edificar-se enquanto ser agente, é importante que o homem descubra seu dom e responda para si “para o que veio” e, exercendo sua liberdade de escolha, em constante comunicação consigo, torne-se autêntico.

No mundo contemporâneo podemos observar um grande sofrimento e profunda dificuldade no que diz respeito ao autoconhecimento. Vive-se conectado a tudo e a todos, porém desconectados da verdadeira realidade, mascarando-a e “editando-a” aos outros.

Nessa busca enquanto ser de ação, de escolha, evidencia-se então uma carência em abrir-se ao existir, alimentando mais ainda a angústia pulsante.

O que me falta é, no fundo, ver claramente em mim mesmo o que devo fazer e não o que devo conhecer, salvo na medida em que o conhecimento sempre precede a ação. Trata-se de compreender meu destino, de ver o que Deus quer propriamente que eu faça, isto é, de encontrar uma verdade que seja verdade para mim, de encontrar a ideia pela qual quero viver e morrer (Kierkegaard, 1980, I A, p.75).

Neste trecho, Kierkegaard aborda um outro aspecto – a relação do homem com o transcendental. Questionamento inevitável ao deparar-nos com nossa finitude e pequenez.
Não cabe aqui detalhar tal questão, haja visto que o presente texto não tem a pretensão de se encerrar, muito menos destrinchar os múltiplos aspectos da filosofia kierkegaardiana, mas despertar mais reflexão daqueles que o leem. No entanto, busca aflorar uma inquietude e encorajar para que se aprofundem em sua angústia, encontrem-se com sua dor e a escutem, podendo então conhecer-se um pouco mais e reconhecer-se enquanto indivíduo dotado de uma infinidade de possibilidades de ser e vir a ser, e nessa escolha, libertar-se rumo à autonomia e autenticidade.

O ser humano, ao procurar-se, inspira-se na natureza e reconhece-se enquanto ser cíclico, dialético, em constante mudança. Utiliza sua criatividade ao criar mitos, melodias, poemas e ritos a fim de simbolizar e materializar o mais íntimo do seu ser. Ele pensa sobre si e em si, transcende, portanto, si mesmo.

(Im)possibilidade de ruína

Que não me arranquem as palavras
os homens regidos pela perversidade
os que mutilam as almas
das mulheres, do campo ou da cidade.

Mas que elas mostrem a força que temos
de renovar-nos quando ecoam contundentes
a possibilidade que existe em renascermos,
inerente à vida, um verdadeiro presente!

Que as marcas do tempo
sejam arte de embelezar meu interior
sejam reflexo da peculiaridade, de cada momento
com as linhas do tempo, estive a tear, ente superior.

Que as palavras alcem voo e enlacem
o espírito embriagado e em dor
e levando-o de forma que a violência se embarace
ao sentir a ternura de um texto acolhedor.

Enquanto isso, por fim
Vou caminhando assim
Torta e errante
Os trilhos de uma existência apaixonante!

A.B.S.

Que o vento venha me envolver
com o cheiro das doces lembranças.

Que balance o meu espírito
para que dance a melodia desta existência fugaz
até que então eu me encontre em transe.

Que ao beijar minha face
eu me emocione sem pesar
com as histórias trançadas
pelo tempo, neste tear.

E se, porventura, uma lágrima
Que esta possa nutrir
o jardim onde minha alma
embriaga-se com teu elixir.

Uma naturalização da indiferença

Uma naturalização da indiferença

“Indolentes caminham os homens, munidos de uma fala inópia. Entoam palavras vazias de verdade e escondem-se no suspiro de quem sente saudade. Ao lembrarem saudosistas dos tempos de mocidade dão de ombros anunciando “agora é tarde! ”.


O discurso fatalista de uma humanidade perdida esconde um aspecto fundamental: a indiferença mascarada pelo “aprendizado” obtido ao longo da vida.
Me espanto com a facilidade de muitas pessoas de manterem uma neutralidade ao deparar-se com a cena de uma policial desapropriando um homem de uma faca e uma corda da cintura dele, ao ser detê-lo e impedi-lo de praticar algum mal. Me indigno ao ouvir suspiros impacientes de alunos que sequer atentam à relevância subjetiva expressa pelo orador de certo tema abordado em aula.
Me entristece profundamente a perda significativa de capacidade de análise de algumas pessoas quando se confrontam com uma ação, avaliando-a pelo viés da descrença e desapropriando qualquer atitude de seu real valor intencional.
Muitas pessoas tiveram seu olhar embaçado pela neblina da indiferença, que por sua vez parece permear as relações desde a infância.
Pobres de espírito aqueles que limitam a si e aos outros às suas convicções deturpadas e individualistas.

Mas graças à singularidade inerente ao homem, existem os que nadam contra a onda que desnaturaliza um movimento da própria natureza do homem: o de cuidar.
Entre eles, estão as mulheres que se angustiam frente uma injustiça, frente o feminicídio ocorrido no outro canto do mundo. Compõem esse grupo singular aqueles que não compreendem a aceitação da homofobia islâmica ou aqueles que se doam à intermediar a melhora dos que se encontram em profundo sofrimento psíquico. Outro elo dessa corrente destoante é composto por aqueles que sequer tem a consciência do bem que praticam ao se colocar à disposição de escutar uma pessoa próxima sem julgamento prévio.
O mais interessante é que, estes que nadam contra a maré, pouco lhes importa a visibilidade dada à eles. Mas gostaria de registrar aqui o reconhecimento das ações carregadas de nobreza e sensibilidade. Não se trata de uma bajulação enfadonha e inautêntica como o que é procurado pelos fracos e opressores, mas da sincera condecoração de uma corajosa entrega ao sentir.

Portanto, aos que me inspiram a acreditar no bem, minha sincera gratidão e reverência.

Apresentação

Apresentação


Há um tempinho criei o hábito de sair e tomar um café. Ter uma pausa no dia para dedicar-me à leitura, desenho ou à escrita.

O blog é, portanto, um lugar de compartilhar um pouquinho do mundo que vivo e, de repente, encontrar outras almas velhas por aí…

ABS.