Era um dia ensolarado, de temperatura amena. Eu havia acordado na hora limite para me arrumar e ir trabalhar e, como em todos os dias, pus meu fone de ouvido e fui caminhando em direção ao trabalho. Era um dia ordinário e eu não acordara preparada para o que ia encontrar.

     Entre o cantarolar e observar as pessoas caminhando cruzei com uma figura, uma estátua, o Anjo Gabriel. Voltei três passos para observar a estátua. Ela era magnífica. Seu corpo tinha proporções tão reais que quase pude vê-la mover-se. O rosto apresentava detalhadamente marcas de expressão, pude enxergar com riqueza dos poros, uma cicatriz e até a rachadura nos lábios. Desejei saber quem era o artista que havia dado vida à exuberante obra de arte e por que ela estava sendo exposta na calçada ao lado dos Correios. E, em milésimos de segundo, meus olhos captaram um movimento inesperado, a estátua piscou. Entendi então que se tratava de uma estátua-viva e dei uma tímida risada de quem caíra em uma pegadinha, peguei uns trocados que tinha no bolso e coloquei em uma caixa que se encontrava próxima.

     Desde o surpreendente evento não pude deixar de nota-lo diariamente quando ia ao trabalho. Me sentia criança, encantada pela capacidade que aquele homem tinha de ficar imóvel. E a figura do anjo? Aquele homem me convidava diariamente à transcendência. Ele se sobrepunha aos transeuntes que passavam sem sequer notá-lo. Pessoas tomadas pela cegueira virtual e calejadas pela vida operária. O Anjo Gabriel estava lá, a anunciar a magnanimidade celestial da arte. Esta, capaz de conduzir o espírito mais castigado aos formosos jardins da esperança onde pode repousar afim de recuperar as energias necessárias para resistir às dores, aos sofrimentos, às injustiças enfrentadas na vida terrena. “A arte deve, antes de tudo e em primeiro lugar, embelezar a vida” já dizia o grande filósofo alemão, Nietzsche. E lá estava o homem, o anjo, na calçada a embelezar a minha vida. E a cada dia que eu passava e cruzava com ele, roubava-me um sorriso simples, mas sincero. Um dia o anjo não resplandeceu luz divina. Parei e me pus a encará-lo numa busca minuciosa de uma centelha, um sinal, da presença angelical da fantasia que aformoseia a existência. Não encontrei. O homem-anjo estava lá, paralisado, e em seu rosto, a feição de angústia. Talvez naquele dia ele não estivesse bem e não houve força que retirasse a preocupação, a frustração, o medo, o cansaço. A tênue mudança em seu rosto evidenciava o peso que aquele homem carregava. Um verdadeiro artista. Um indivíduo guerreiro que levava a mensagem de maior valor: de não nos esquecermos, não deixarmos de lado, o que é sublime e eleva a alma. De lembrarmos da arte do serviço e da entrega e de que a recompensa de uma ação despretensiosa não pode ser comprada ou baixada na internet. Mas naquele dia o Anjo Gabriel, que era um homem, ecoou sua interna súplica: quem irá lembrar-se de mim?

     Desejei abraçá-lo e dizer-lhe que o que ele fazia era reconhecido. Que a arte era apreciada e valorizada. Quis agradecê-lo poro presentear-me diariamente, quis recompensá-lo – de alguma forma – na mesma medida, porém não soube fazê-lo. Congelei-me no medo de ser julgada e segui meu caminho. Contudo, a imagem do homem-anjo seguiu-me e não parei de pensar nele. O que acontecera até o momento vigente? O que o levou a ser uma estátua viva ao lado dos Correios? O que o motivava diariamente ao acordar? Dentre mil questionamentos decidi que no dia seguinte não me renderia à covardia.

     Acordei ávida pelo encontro com o homem-anjo, ensaiara diversas vezes o que falaria no fatídico momento. Arrumei-me apressadamente e fiz a rota que realizava todos os dias. Meu olhar – geralmente distraído – olhava à frente à procura dele. Meu coração estava acelerado e um misto de emoções me acometiam. Cheguei nos Correios e não vi anjo algum. O homem-anjo era agora um operário, uma estátua do homem comum, aquele retratado magistralmente por Charles Chaplin em Tempos Modernos. A destreza em parecer uma estátua continuava lá. Mas o encanto deu lugar à verdade, lembrei-me da miséria; da fome; da luta diária. O homem-operário, com sua beleza bélica, chamou a atenção dos que passavam e eu silenciei. Tudo o que havia planejado esvaiu-se. Aquele homem era surpreendente e restou-me apenas a necessidade de uma nova reflexão.

     Quiçá, com tantos ensinamentos, eu possa alcançar uma fração da riqueza desse homem-anjo-operário-mestre. O Anjo Gabriel despediu-se mas deixou sua marca.

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