“As pessoas sempre dizem como é difícil ter uma alma artista, mas ninguém considera o quanto é difícil para o artista não ser artista. ”

Desconhecido

            Para uma alma artista a poesia compreende a existência. Ela pode tomar uma forma lírica e esbanjar um romantismo eterno bem como pode vestir-se melancolicamente e envolver-se em tristeza e, ainda assim, é arte. Um bom dia no elevador pode apresentar-se como manifestação pura do bem inerente à natureza humana ou como exemplo vil do automatismo do homem que ensurdeceu os ouvidos à voz do espírito.

            O caminhar toma outro tom e segue ritmo próprio. O artista pode correr afim de sentir o vento esbofetear sua face com as histórias do tempo ou andar lentamente, sentindo seus pés encostando a terra, deleitando-se. Um dia chuvoso é dádiva a elevar o espírito poéticos aos recônditos espaços de seu interior. As atividades cotidianas também são coloridas com o pincel da arte. Uma planilha é nado sincronizado onde dados estatísticos, números e categorias dançam e com precisão apresentam o resultado de meses de trabalho. A organização é única, entendida apenas pelo próprio artista pois trata-se de uma feira artística onde cada canto é um stand com organização própria e distribuição de espaço singular.

            Os horários e prazos se configuram numa relação peculiar. Por um lado são secundários haja visto a impossibilidade de se acelerar a criação; por outro, prioritário quando se está tomado pela inspiração.

            A noite pode tornar-se companheira fiel uma vez que envolve os olhos do artista em sua imensidão, como pode também vir a ser sua arque inimiga ao atrapalhar na produtividade ao amanhecer.

            Ao artista fere a levianidade e insensibilidade alheia. Não é difícil acordar e dançar tango com as badaladas do relógio, muito menos suspender a correria do dia a dia para contemplar um dente de leão que nasceu na rachadura de uma calçada anunciando a força da esperança e o calor da vida que vence a frieza e opacidade cinza do cimento. Mas é quase impossível sustentar o peso da indiferença e a ensurdecedora violência que permeia as relações do homem.

            É pedido ao artista que se torne mais organizado e responsável, diga-me que responsabilidade tem aquele que vira as costas para alguém e nega ajuda afim de não se atrasar para o trabalho? Que organização é essa de ruas tumultuadas, lotadas de pessoas que muito se esbarram mas pouco olham-se nos olhos?

            É pedido que se pense no futuro, que se economize, que sejam criados planejamentos concretos… Penso que essas pessoas economizam tanto que se esqueceram que elogios, abraços, afeto em geral são inesgotáveis e não precisam de economia. Engraçado é que essas mesmas pessoas se esquecem de economizar nas críticas e exigências, contraditório não? Depois dizem que os artistas que são loucos e doentes! Vai entender.

            Ao artista não é difícil sê-lo, mas sim deixar de ser. De tanto exigirem que não o seja, ele vai se definhando, desnutrido, vai perdendo sua vivacidade, atordoando-se em incompreensão. Angustia-se ao ver-se impotente, cercado de falsidade e coisas supérfluas. Um dado momento em sua caminhada encontra, em uma esquina qualquer, a desesperança. Esta, com a potência de um tufão, o revira do avesso, seca a tinta do seu pincel, cega e guia-o por outra trilha. A desesperança amputa suas mãos, rouba a voz e o desapropria das palavras doces, levando a alma do artista à sarjeta onde, desamparada, ela é violada, maltratada, mutilada.

            Os trilhos da desesperança levam o artista à porta da morte. Atormentado pela dor da descrença, ele vê na morte a ausência de tormento, o vazio. Sem norte, fica embriagado com o veneno sedutor da morte e acredita ser a única saída. Porém, da mesma forma que no tronco cortado pelo homem nasce um broto que anuncia uma segunda chance à vida, a alma que habita o artista recebe a chance de reinventar-se na matéria. Essa chance se dá de maneira singular e cada um tem uma história a contar.

            Me foi dado o voto de Minerva e minha pena foi eximida, a saber, a de ter um espírito artístico, espontâneo, carismático e ingênuo. Não foi eliminada a culpa, esta gosta de visitar-me de tempos em tempos, mas tenho percebido que a frequência diminuiu e acredito ser porque não tenho alimentado sua carência insaciável.

            De resto, utilizo o dom da criatividade para criar estratégias de forma que proteja minha alma sem que me torne eremita. E o que a criatividade não der conta, eu finjo ter paciência. Sorrio, aceno e finjo demência.

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